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Devorar é Preciso (II)

  • Cássio Eduardo Soares Miranda
  • 10 de set. de 2018
  • 5 min de leitura

Em "O futuro de uma ilusão", Freud sustenta que em um dado momento da história a religião fracassaria, uma vez que ela, sendo uma ilusão, daria lugar a discursos mais racionais que resolveriam as dificuldades da humanidade. Sendo a religião uma ilusão, ela representa um estado imaturo da humanidade e o progresso da ciência e da educação garantiria a maturidade da humanidade e, portanto, a derrocada desse infantil estado no qual a humanidade se encontrava.


Como se sabe, a religião não fracassou. O provável fim da religião e de suas diversas manifestações não aconteceu, mesmo com os avanços incontestáveis das ciências. Pelo contrário, a ciência avança e proporcionalmente a religião também, talvez pelo fato de a ciência não ter conseguido eliminar o mal-estar na civilização não dando ao homem a tão sonhada paz. Conforme já apontado, notamos um incessante crescimento dos movimentos religiosos e o psicanalista francês Jacques Lacan sustenta que a religião triunfa porque produz significantes e enche o mudo de sentido, como uma espécie de transbordamento do simbólico.


Disso tudo, o que se pode extrair? Talvez a primeira consequência seja o fato de que o transbordamento de significados da religião - que não é de hoje - concedeu ao homem um modo peculiar de lidar com os chamados pecados capitais: primeiro foi o de nomear cada uma das pulsões devoradoras do homem e, ao mesmo tempo, garantir um modo de virtude que poderia compensá-la, ou seja: combate-se um dado “pecado” com o apontamento de uma virtude que lhe seja compensatório. Em segundo lugar, com uma “sacada” interessantíssima foi a associação de cada um dos pecados com um tipo de demônio.

“Nosso conhecimento do patrimônio histórico de certas doutrinas religiosas aumenta nosso respeito por elas, mas não invalida a nossa proposta de que elas devem deixar de ser apresentadas como as razões para os preceitos da civilização. Pelo contrário! Esses resíduos históricos têm nos ajudado a ver os ensinamentos religiosos, por assim dizer, como relíquias neuróticas, e agora podemos argumentar que o tempo, provavelmente virá, como faz em um tratamento analítico, para substituir os efeitos da repressão pelos resultados da operação racional do intelecto" (Freud, 1927)

Peter Binsfield, teólogo de origem saxônica, comparou cada um dos pecados capitais com seus respectivos demônios. Assim, temos Asmodeus do lado da luxúria; Belzebu do lado da Gula (Belzebu é o príncipe dos demônios); Mammon (o deus das riquezas) do lado da avareza, Belphegor como o demônio da preguiça; Satã, como o representante da Ira, Leviatã, O invejoso e Lúcifer, aquele que quis ser igual a Deus, como o dono da vaidade, ou do orgulho. Estratégia inteligente e “super-psicanalítica”, que é a de nomear, de dar nomes aos “demônios” que nos assolam. Em Psicanálise, a Clínica da nomeação é aquela clínica que consiste em emprestar significantes ao sujeito a fim de que ele consiga pelo menos Saber-fazer alguma coisa com seu sintoma. Trata-se de uma clínica que parte sempre da lógica do significante e consiste, inclusive, no dizer de Jorge Forbes, de emprestar consequências.


O que a nomeação tenta fazer é impedir que o sujeito seja devorado por um modo de gozo que lhe é peculiar e, no caso dos transtornos alimentares, um modo de gozo devorador.


No que respeita aos transtornos alimentares, segunda a psiquiatria contemporânea, os mais conhecidos são a anorexia e a bulimia e fazem o sujeito desenvolver uma relação doentia com a comida - ou empanturram-se com até 15 mil calorias em uma única refeição para depois colocar tudo para fora -caso da bulimia- ou ficam dias sem comer – como é o caso da anorexia. As pessoas acometidas por tais transtornos, ainda segundo a psiquiatria, desenvolvem uma obsessão pela forma física e distorcem a autoimagem a tal ponto que se sentem gordos mesmo estando com “aspecto cadavérico”. O resultado é a crescente deterioração física e mental, que começa com sintomas leves como queda dos cabelos até complicações cardiovasculares, renais e endócrinas graves que podem levar à morte. Em síntese, pode-se dizer: Os Transtornos Alimentares são definidos como desvios do comportamento alimentar que podem levar ao emagrecimento extremo (caquexia) ou à obesidade, entre outros problemas físicos e incapacidades. Os principais tipos de Transtornos Alimentares são a Anorexia Nervosa e a Bulimia Nervosa, conforme dito acima. Essas duas estão intimamente relacionadas por apresentarem alguns sintomas em comum: uma ideia prevalente envolvendo a preocupação excessiva com o peso, uma representação alterada da forma corporal e um medo excessivo de engordar. Em ambos os quadros os pacientes estabelecem um julgamento de si mesmos indevidamente baseado na forma física, a qual frequentemente percebem de forma distorcida.


De acordo com uma pesquisa realizada em 2002 pela UNIFESP - Universidade Federal de São Paulo - com 133 praticantes de ginástica olímpica, nadadoras e garotas que fazem aulas de Educação Física na escola, entre 11 e 19 anos de idade, o que rege a lógica dos transtornos alimentares é a obsessão pela forma física perfeita. Resultado: 74% das ginastas, 56% das nadadoras e 58% das demais confessaram o temor. Não é à toa que elas comem menos do que deveriam - 41% das ginastas fazem dieta, por exemplo. No cardápio da maioria faltam cálcio e carboidrato. Esses comportamentos, porém, podem ser um sinal de alerta para um problema mundial que atinge 1% da população feminina entre 18 e 40 anos e não recebe a devida atenção no Brasil.

"É a criança alimentada com mais amor que recusa o alimento e usa sua recusa como um desejo (anorexia mental)" (Lacan, 1958)

Ao se considerar o sujeito enquanto marcado pela linguagem, a psicanálise demonstra que esse sujeito consegue demitir-se do próprio corpo, naquilo em que ele necessita das imposições biológicas provenientes do organismo, o que evidencia a irredutibilidade do desejo à necessidade. Dito de outra maneira, desejo e necessidade encontram-se em patamares diferenciados. Em quaisquer dos chamados transtornos alimentares – anorexia, bulimia, obesidade, dentre outros, a psicanálise irá toma-los como uma espécie de errância, destino ou vicissitude do desejo e do gozo. Nesse sentido, o alimento é tão somente uma espécie de “suporte material” daquilo que poderíamos chamar de “verdadeiro objeto” em torno do qual tais “transtornos” se organizam. Em termos lacanianos, podemos dizer que eles se organizam ao redor do “nada”. Segundo a psicanalista Marcia Zucchi, em “Algumas observações sobre a clínica da obesidade em psicanálise” na anorexia se trata do “nada” enquanto objeto que se come e esse “nada” representa a tentativa de se eliminar o desejo através da satisfação da demanda. Por sua vez, para essa mesma autora, na obesidade se trata de comer para circunscrever um “nada”, “um vazio” persistente, retrocedendo para o sujeito sem qualquer tipo de palavra que dê nome à coisa, ou seja, sem qualquer “mediação significante”.


Mas, vamos continuar na semana que vem, direto de algum ponto comestível do planeta, pois, devorar é preciso!


P.S: vou ali comer meu sanduíche!


Sevilha, 10 de setembro de 2018.





Cássio Eduardo Soares Miranda é Psicanalista e professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Saúde e Comunidade da UFPI.


 
 
 

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